quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Gárgula



Vós que ris dos próprios tormentos
que ornam de cores as torpes desgraças
adejando sorrir dos mais vis lamentos
lábios escancarados, gargalhadas devassas

plebe fútil, tosca, ignóbil, odiosa
de sonhos épicos e obviedades em par
multidão de moral leve e tão majestosa
quanto palácios de areia erigidos frente o mar

infeliz, eu, que em triste vida
vi-me cercado de figuras tais
no âmago corroi-me essa chaga, ferida
que rubra e pútrefa, provoca-me ais

Vocifere! Epopéia maldita! Grotesca completude!
Dance o bovarismo incongruente, insatisfeito em sua ruína
Clame ao transcentende surdo sua sacietude!
Pois ao longe verei tua desgraça, devorada por aves de rapina


Soares


tela: "Wounded Bird and Cat" Pablo Picasso, 1939

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Negrume


do alto olhei e vi
um poço medonho, fastidioso
o pêndulo mortal estava ali
bem como um gato negro manhoso

corvos obscuros revelavam segredos obtusos
a aldeia vociferava o arrastar-se de ideias
procelas que arrebentavam barcos moribundos
confundiam-se com o horror de negras aleias

orangotangos ululavam segredos macabros
envoltos de indecifráveis emblemas
besouros e caveiras, sopros e pigarros
de uma alma instável para com os seus dilemas

Poe, perambulante, focava mistérios
retratava olhares, risos soturnos
ornava segredos e cemitérios
retratava olhares, risos imundos

conta-me o ardor dessa ciranda
que dança ao escutar Puccini
és melancólica e leviana
és trágica e sublime 


Soares

domingo, 31 de outubro de 2010

Fantasma da noite



Sugo do sangue a poesia,

suave serpente malígna.

Sugo-a até à melancolia

nesta busca insana e indigna.



Seguramente sei que és vil.

Seguramente sei que és poderosa,

assassina, cruel, magnífica, atroz, crível,

seguramente sei que me mata.



Ouço o furor de sinos eternais

como um templo dentro de minh'alma.

Seus pilares já não suporto mais:

cravados estão meus dentes numa doce garganta.


Sugo do sangue a poesia.

Sou um fantasma da noite...

Seguramente sei minha profecia:

seguir o Ideal, trazendo à boca um açoite.


* Tela: Salvador Dalí - Cabeça de nuvens

la langue et les dents




Provo a ti, por maior transgressão que seja
que não há maior amor hercúleo que tanto se almeja
quanto a paixão vil que ofereço-lhe em ornada bandeja

Provo a ti, por enigmas de esfinges altos e decifrados
Não respiram neste mundo tamanhos pecados
quanto amores, arrastados, andróginos abafados

Provo a ti, pela imagem refestelada e fugidia
de uma dama atroz,vampiresca, malfazeja e sombria
que a noite cálida e terna vale mais que o sol do meio dia

Provo a ti, amada minha, salivar de amídalas
que eu só, estarei regalada, infeliz, perdida
côncava a soluçar por espasmos de tua vida

Provo a ti, que as flores maldosas não murcham
que o torpor e a tormenta não se permutam
pela doxa de homens burgos, que nada perscrutam




Soares


tela:
"Apollo and the Nine Muses" Gustave Moreau (1856)

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Casa-Grande e Senzala


Choram os escravos, morta a baronesa!
Na casa-grande o cantochão ecoa...
Prostrada, a escravaria sempre acesa
Lamenta o fim de sua sinhá tão boa...

Envolta em sua mortalha de mantilha
Revive os ritos destes hemisférios...
E suas mucamas, postas em quadrilha
Não se levantam deste chão de ferros...

No salão-mor, em suas escadarias
Fulge o barão, entre tapeçarias
E vasos de cristal e porcelana...

Seu porte esplêndido na sombra flana
Enquanto o esquife desce para a tumba
E morcegos maus voam na catacumba...

À memória de minha tataravó materna, Brazilia Eugênia Nogueira de Almeida, baronesa de Guaraciaba


Fernando MB

Vermelho-Sangue


Les reins portent deux mots gravés : Clara Venus ;
- Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d'un ulcère à l'anus.

Ao avesso de uma dor
Um inebriante torpor
incolor, onde o sonho reina triunfante
Uma figura enigmática, esfíngica, meduséia, insiste
em seguir com seu cortejo infernal no curso do meu sangue
Ai! Salomé desvairada
travestida de uma cor
que é tua.........................................................
VERMELHO
SAN
langGUE criatura
que é minha, minha, na treva da noite quando a hora da angústia soa
VOLÚPIA - um acorde de Bach na Tocata e Fuga em Ré Menor
Sonoro
sussurro
suave
silvo
sacro
sibilante
sinto
saltar
num
sem-fim

Eu ouvi o ressoar de longas horas

De um relógio sem fim.

Não sei em que estrada de tempo

A vida se perdeu,

Só sei que das vagas

(por onde resvalam as horas)

Há o resquício primordial do início-desfecho

De todas as coisas.


Fr
a
g
m e n
to
s

de um Desejo no segundo círculo concêntrico da Terra.........
Culto à Hécate, venerável deusa da noite
de plástico que
escorre cintilante
na baía de Guanabara
Fazei que queime em tuas fráguas essa voluptuosidade
(dis) simulada
num vivo, intenso, e contínuo

ver.....................................
me...............................................
lho
.................................................san
.................guí
(neo)











* Título da tela: "Noite" de Salvador Dalí
Silhueta feminina cadeira vermelha sob um pano. Vermelho, com objetos no telhado

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Malsã



Desprezo a atroz submissa,
mulher escrava de princípios éticos.
Rejeito a donzela frígida,
ignóbil e contrária aos devaneios céticos.

Queimem em labaredas flamejantes e impetuosas
as raparigas imaculadas de cenho curvado!
Lancem no Aqueronte as filhas bondosas
e as vísceras das cândidas mães ao Cérbero esfomeado!

Hei de regurgitar-te de minhas entranhas
fêmea obediente, ovelha muda e vil.
Da pompa que vestes em roupas de tamanhas
austeridades decrépitas, és serva tosca, pueril.

Gargalho de teus sofrimentos e pensamentos rasos,
da tua incongruência de alma fútil e asquerosa.
Quem dera fosses perdigueira do teu futuro escasso
para poupar-te a lástima de seres trivial, réproba morosa.


Soares


*tela: "Arrufos", Belmiro de Almeida (1887)

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Anunciação


Por toda a parte Sílfides tenebrosas: as faces travestidas de fome e miséria, como que vindas do reino de Tântalo. Harpias vis a nos espreitar com seus rostos terrivelmente suaves.
Outrora, eu andara distraída pela rua, quando a Morte me espiava. Eu, surpreendida, ofendida, maculada, encantada sob a luz de uma lua minguante e anciã, contemplei ali, na calçada estendida, uma lânguida estátua destruída. Pedaço de carne solto sob a pele pálida e maquiada.
Na fronte angular, traços de rainha destronada, os cabelos louros e artificiais são grotescas serpentes a se devorarem. A pose de afronta, o gesto que oscila, a ferida que salta, o flanco que se abre formam uma ópera lírica, ao som de meus nervos pulsantes, palpitantes. Há uma atmosfera impura. Os olhos verdes de vidro ainda cheios de uma beleza impossível, abertos, voltados para o céu como se esperassem algo. No canto da boca, um sorriso escarninho mais enigmático que o da Monalisa, mais apavorante que o da Esfinge. Perniciosa, exige ser olhada!

sábado, 9 de outubro de 2010

Brujería


Velas acesas, em meio ao cruzeiro
Ele ajoelha-se, o rosto contrito
A conjurar com seus traços riscados
Cabalas sáfaras de um velho rito

A dama loura sai de seu sarcófago
Vai passear no chão do cemitério
Vem sequiosa, qual onça no cio
Na altivez de seu esplendor funéreo

Lábios proferem orações em rima
Tridente em punho, a dama se aproxima
À meia-noite, na hora aprazada

E ele treme, em ondas de desmaio
E cai, como atingido por um raio
E de sua boca sai uma gargalhada


Fernando MB


* Quadro: Dante Gabriel Rossetti, "Lady Lilith" (1868)


sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Rapsódia


Dentro da noite, em graves rapsódias
Em mim resvalas, a me beber lepidamente
A passear tua pele em minha pele
A desfolhar, suavemente, as minhas pétalas

Sarças de fogo queimam com doçura
A açular os cães que sempre caçam, lestos
No ermo das florestas, prenhes de mugidos

Quanto a mim, enfim sigo sepultado
Entre penumbras, nas garras tremendas
Em suspiros naufrago, e novamente morro

Anjos explodem, caem pelos céus
Faunos gargalham, trocam seus anéis
Centauros trotam, soltos nos abismos
Mármores racham, cerram os mausoléus


Fernando MB


*Quadro: Odilon Redon, A Carruagem de Apolo (1910)

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

A palavra nua



Escrevo por linhas indecisas
em folhas feitas de tempo.
O verso tem a força de um sonho.
A dor é profunda como a noite.
O sofrimento é lento e brando.
O meu amor é o amor do mundo.
O meu medo é o medo do mundo.
Dentro, a fome, a falta, o sussurro.
Fora, a fúria, a farsa, o princípio.
E, no meio, a palavra nua.

Matiz


Uma morenice longínqua
Me acometeu
Contemplativo erro
As águas mediterrâneas
Imemoriais me avistam
No matiz terracota
O sexo aquarelado
Extático barco
Corpo sagrado singro
No mesmo lugar
A Virgem
O pagão
Sangram


José Heronides

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Luxe



V e r s o s s o l t o s, f i n o s. De pedras, c o l a r.
A riqueza que me banha
Sutilezas, artimanhas,
Sedução, lástima, devoção, odor de minhas entranhas.


V e r s o s r a r o s. De rubis, c o l a r.
Basbaques que carreguem a caleça
De diamantes, que eu ornada amanheça
O mover de meu ventre traz do profeta a cabeça.


V e r s o s n o b r e s. De jaspe, c o l a r.
Que banhem-me em pétalas de ouro os eunucos
Sob minha ávida e pura altivez, os tolos, os estultos
Eu, fatal, sacerdotisa e pitonisa, dona de todos, dona de mundos.


V e r s o s o r n a d o s. De safiras, c o l a r.
Meus lábios rubros,sangrentos, nada proferem
Encarcero nas garras felinas manhosas os que me querem
Voz fêmea, Lilith, Salambô, Cleópatra, Vênus, Salomé, Natássia, que me venerem.


V e r s o s s u b l i m e s. De esmeraldas, c o l a r.
Eva, máter, Shiva, Pandora
Servo, escravo, o homem prostrado, adora, implora
Amores loucos, infindos. Rainha, deusa, Jezabel, Flora.


V e r s o s l e v e s, aterradores. De pérolas, c o l a r.
Debruço morosa, sacra, santa, retumbante, em cortejos vis
Devaneios sensuais, sussurros, prazerosos, suculentos, escassos, anis
Gueixa inebriante, posta em pedestal, senhora de si, animalesca, loba, amante, meretriz.


Soares


*foto: Oscar Wilde

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Las Vampiresas



A sombra morro-porque-não-morro ilumina

Suas partes escuras não estão assim encovadas

A las vampiresas les amam hacerla sufrir

Por supuesto la sangre vital les faltan

Aunque se le ocurran las películas más raras

O cinematógrafo refazendo a capital imperial

A não acertar em cheio as telhas feridas nas coxas

Porque a cidade se modernizou e não perdeu

A alma apesar do bota-abaixo, resiste

Não foi possível sanear os subterrâneos

Com as deusas e deuses clamando por saciedade

À mesma medida que nascem nos outros a morte

Que não limitam a minha, a tua fome

A lua no cinematógrafo muda em preto e branco

Cada matiz de vermelho de bom gosto

O corpo a pedir mais em nome da legião faminta

De novidades e reencarnação tu regozijas

Ao sabor das cortesãs de sempre.



José Heronides

domingo, 3 de outubro de 2010

ENCANTAMENTO



Em uma estelar tarde ornada de sonhos,
cintila o alvo cristal do mistério
com vazios raios difusos e mornos,
dentro da pele e da alma sem critério.

Sensação de cometas sobre espáduas,
estrelas pontiagudas como espadas
ferem o corpo do céu desmaiado
e tombam flores lânguidas de Maio.

Há uma névoa misturando o ar úmido,
como a linda nebulosa andaluz
dentro da veia de um vento túmido.

Dentro, antigas Sibilas sinuosas,
feito grandes esfinges orgulhosas
marcham rumo a um êxtase de luz.

sábado, 11 de setembro de 2010

Perfume


Doce aroma suave como um sonho
e letal como um veneno cigano.
Busco-te raro em um afã medonho
e afogo-me num prazer de oceano.

À tua emanação pura e dolente,
sinto os olhos baços. Em arrepio,
ao mais íntimo do homem, seguem-te
minhas narinas em pleno delírio.

Exalação forte como pilastra
de um templo antigo dentro de minh'alma,
feito um fogo que em meu corpo se alastra.

Por ter como Ideal a Perfeição,
dilacera-me a carne esta paixão,
qual verme a tragar-me com atroz calma.

domingo, 5 de setembro de 2010

UBER


Quando te vejo lânguida sob a lua, ó Beleza estéril,
neste afeto pagão, que de ti implora nobreza,
sinto estalar no peito, qual lira etérea e pueril,
uma majestosa repulsa alheia à natureza.

Quando te espero passar, em imundície velada,
suponho que é a tua alma infame,
que exala essa emanação encantada.
E eu, ébrio de paixões, suplico-te que me ame.

Quando, de súbito, esgueirando-se lúbrica,
como gata no cio, tu me fitas,
com olhos de Medusa, tua finalidade única
é enlevar-me a alma e a lucidez, de ti cativas.

Quando me entrego à influência malígna
de tua Volúpia a enlaçar-me como serpente,
preso às flores do Mal de que és insígnia,
adivinho o vil intento de tua sórdida mente:

"Quando te persigo neste afã que comigo trago,
o teu frescor é o meu desejo, jovem mancebo,
com ares de Judite transfigurada, meu doce apaixonado,
arranco-te o coração e dele, o sangue bebo."

* Tela Judite e Holofernes de Caravaggio

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

aliá




Eis ela que de grandeza sonolenta
contrapõe-se aos princípios da estética
facetas rubras, arrasta-se atenta
nas ruas cheias, farta beleza cética

Fulgura nos bailes sem receio
de vozes estultas com críticas grotescas
tem por si amor como chama em seco centeio
na alma, vontades nada pitorescas

Inspiradora de poetas trapeiros
musa de sibaristas macabros
procrastina arrepios, devaneios
em seus pesados braços de alabastro

Clamo a ti para saciar-me de auras
para em Fontenay experimentar a fartura
vinda de tua existência que sobeja gauras
tendo urros inebriados de loucura

Vinicius Soares

* tela: "Beauty" Boris Kustodiev (1915)

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

lune



Ai de mim que na alcova
contempla a fria Pérola alva
a esgueirar-Se no manto negro manhosa
Oh Deusa noturna que amantes salva

Ai de mim que de tosca e vil distância
enamora a Medéia crepuscular
as estrelas que Te seguem bem sabem a infâmia
que causei no recôndito, a contemplar

Ai de mim que persevera em tal grandeza
ideal inalcançável, spleen’s intermitentes
conservarás eternamente Tua beleza
enquanto de velho hei de ver cairem-me os dentes

Ai de mim que no possesso almeja esperanças
do amar-Te, beijar-Te com prazer
bem sabem os ébrios, andarilhos e crianças
que esfumaças-Te ao amanhecer


 Soares

quarta-feira, 21 de julho de 2010

À l'hotel blafard


- Simulacro de um simulacro - pensei,
ao ver teu braço de mármore,
presa nos espelhos da memória,
bela e fria como uma flor de estufa.
Por muito tempo te procurei:
em portas atrás de portas, em salões vazios,
em corredores sombrios, decorados ao gosto de uma outra época,
em câmaras labirínticas dentro de meus nervos túmidos.
Somos como duas estátuas
desconhecidas,
perdidas,
no vazio
de um jardim
suspenso e esquecido.
E que, em outra vida, ainda
choram a paixão apenas sonhada.
Num espetáculo estático, vozes sonolentas me sussurram
sons sôfregos e insensatos, cujos donos são fantasmas noctâmbulos que,
subitamente, de espanto são mudos.
Qual a decoração
inerte,
perene,
cadente,
eles me espreitam,
sombrias sombras,
feitas de querubins de marfim
com folhas mortas e rosas enrodilhadas
em botão, como pequenos cérebros apodrecidos, nesse hotel taciturno.
Filhos deste odioso castelo de uma época distante,
silencioso como um túmulo.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

L'amour




Exumo com afinco teu sorriso perenal
de arcada branca perolada
Deixo entronizada em terno pedestal
a verve taciturna de tu’alma

Teu olhar estético, estático
Teu falar pálido, cálido
Teu pensar absorto, absurdo
Teu tédio esguio, estio

Alcançar-se-ia eterna beleza
se ainda respirasse?
Lançar-me-ia em sangrenta incerteza
se teu lânguido corpo eu não mais velasse

Não apenas és minha em Marienbad
cultuo-te, louvo-te
És também minha em Frederiksbad
aos poucos, sorvo-te

Dos séculos eternos serás simulacro
o teu fulgor a pura arte evoca
Não obstante de esplendor sacro
dotada é tua existência morta



Vinicius Soares

quinta-feira, 15 de julho de 2010

"El Conde"


Os ventos uivam ao redor do conde...
No alto, a noite esconde os esplendores...
Gládios e facas vão-lhe abrindo, aos montes,
O sortilégio de sombrios amores...

Nada restou, o espelho se partira!
Ao longe, pios ouvem-se freqüentes...
De pé, e usando um broche de safira,
Deseja alguém em quem cravar os dentes!

A fronte dura e álgida rebrilha
Ao lamentar aquelas salas frias,
Os aposentos que seus pés percorrem...

E quando ouve os lobos da matilha,
Suporta em vão a tocha de agonias
Enquanto suas esperanças morrem...



Fernando MB

terça-feira, 13 de julho de 2010

"El Desdichado"


Bebeu de um gole a taça de conhaque
Ruflou sua capa ao sabor dos ventos
Na escuridão, um velho almanaque
Continha os cânticos de seus tormentos...

"Ó Deus! o fado de suas criaturas
É não saber, na errância, do porvir
Quisera o Céu, em suas ondas mais puras
Não ter deixado minha alma partir!"

Percorre, assim, as ruas, toda noite
Com seu rubi e seu anel de prata
A encontrar, nas frestas, o açoite...

No beco escuro, pela madrugada,
Vai saboreando os transes do martírio
Roçando os lábios no frescor de um lírio...



Fernando MB


sábado, 10 de julho de 2010

A carne

Por muito tempo venho pensando sobre o escuro leito de minha alcova no ato de viver.
Não o conceito em si, mas como realmente atuá-lo.
Como se fosse algo de dentro de minha carne, eu processo a vida nas entranhas de minhas glândulas mortas. Sem rubor, sem pudor, eu contemplo horrorizada o efeito desse mecanismo no processo de minha putrefação.
Doo-me suavemente à tentação do Nada.
Se a vida se alimenta de mim, eu me alimento da morte e o verme, da minha carniça.
O meu sangue é o mais fino vinho, e o meu corpo é o banquete nupcial.
Que a noite seja nossa testemunha.
Venha, ó senhor dos túmulos, meu noivo, meu amigo, consumir-me a dor, a paixão, o ventre, os olhos. Venha infunfir-me teu veneno. Venha consumir-me a carne.
Venha, pois nossa única certeza é a morte, e na arte cênica de atuarmos a vida somos maus atores.